Juca Chaves, artista brasileiro falecido no último dia 25/03, já foi tema de dissertação de mestrado do PPGH-UFG
O trabalho se intitula O menestrel maldito no caminho da censura: a trajetória política de Juca Chaves entre a sátira musical e o show solo de humor (1960 - 1979). Defendida pelo Prof. Ms. Matheus Alves S. Gonçalves, sob orientação do Prof. Dr. Jiani Fernando Langaro, a dissertação pode ser acessada neste link: https://repositorio.bc.ufg.br/tede/handle/tede/11736. Por ocasião do falecimento de Juca Chaves, o autor emitiu a seguinte nota:
Quem calou o menestrel maldito? Juca Chaves, músico e humorista carioca, morreu aos 84 anos em Salvador, onde residiu por pelo menos duas décadas. Sob voz tenra e anasalada, Chaves cantou o amor romântico, a mulher idealizada, o escárnio às autoridades, e avaliou com acidez os eventos políticos do Brasil, sobretudo na segunda metade do século XX. De acordo com o amigo Jorge Amado, tratava-se da voz “mais livre do Brasil”. Não à toa, a defesa da livre expressão artística cooperou para ampliar o seu público, quer nos teatros e clubes nos quais se apresentou, quer na venda de discos compactos e LP’s. Chaves, que viveu por anos em São Paulo, esteve próximo da bossa-nova e notabilizou-se como compositor de modinhas e sátiras musicais. Foi defronte à sátira e, mais precisamente, à comédia do artista e seus impasses com a censura oficial, que surgiram as inquietações diretivas da dissertação O menestrel maldito no caminho da Censura: a trajetória política de Juca Chaves entre a sátira musical e o show solo de humor (1960-1979), defendida em 2020 pelo PPGH-UFG, sob orientação do Professor. Dr. Jiani Fernando Langaro. Para a construção do trabalho, fontes hemerográficas, fonográficas e autobiográficas foram essenciais.
Nas notícias de jornais do último fim de semana, lê-se "morre Juca Chaves, compositor e humorista que ironizou a ditadura militar”. É verdade. Por diversas vezes Chaves escarneceu a Ditadura Militar do Brasil. A propósito, “como se mede um burro”? "Médici da cabeça aos pés", ele diria. O compositor, no entanto, também sofreu reiteradas represálias da censura institucionalizada (herança do Estado Novo) na democracia liberal das décadas de 1950 e 1960, alcançando posições recordistas entre os artistas admoestados pelo Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP). Este foi um dos focos de nossa pesquisa.
A partir do entendimento da noção de hegemonia em Gramsci e da releitura operada por Raymond Williams sob a ótica do “hegemônico”, defendemos que grande parte da produção artística de Juca Chaves, sobretudo no início dos anos de 1960, vituperou o consenso fabricado por empresários da comunicação, do mercado fonográfico, do show business, e de outros agentes da sociedade civil vinculados à elite econômica do período. Em resposta à arte musical, humorística e mordaz, a Censura trazia de volta à baila o “Estado-força”, que retomava a coerção. Chaves respondeu processos e chegou a ser detido. Em contrapartida, empreendeu uma campanha solitária contra censores, os quais achincalhava em músicas, declarações à imprensa e piadas em seus espetáculos. Identificamos nesta conduta não apenas a reação direta do humorista frente os ditames oficiais, como também a estratégia política de deslegitimação da ação censória - que o levou, em alguns casos, a vencer o processo e liberar canções. Confirmando, como argumentado por Williams, “a realidade de qualquer hegemonia, no sentido sempre dominante, jamais será total ou exclusiva”.
Nesse momento, o compositor carioca também atacou políticos conservadores, a exemplo de Carlos Lacerda, a quem citou nominalmente em algumas canções, como na que foi destinada à primeira-dama do Brasil, “Dona Maria Tereza, assim o Brasil vai pra trás, quem deve falar, fala pouco, Lacerda já fala demais”. Sobrava também para os periódicos, ligados à direita, que reproduziam o anticomunismo, “enquanto o feijão dá sumiço e o dólar se perde de vista, o Globo diz que tudo isso é culpa de comunista”.
Foi amigo do político gaúcho Leonel de Moura Brizola e esteve próximo da esquerda durante parte da sua vida, a ponto de dirigir-se ao Rio Grande do Sul para participar da Campanha da Legalidade que garantiu a posse de João Goulart e impediu um golpe militar, em 1963. Neste ano foram intensificados os vetos e boicotes à sua presença em programas de rádio e TV. De cabelos longos, sorriso irônico e vestimentas exóticas, se apresentava descalço. Alegava o choque estético como parte importante de sua persona.
Chaves, todavia, também utilizou da má fama para promover a sua obra. É o que verificamos quando examinado o lançamento e a repercussão do disco “As Músicas Proibidas de Juca Chaves”. A produção continha canções censuradas e músicas que ainda teriam problemas com os órgãos de controle social. Entre as primeiras, Brasil Já Vai à Guerra, quando atacou diretamente as forças armadas, associando-as ao desperdício do dinheiro público relacionada à compra de um antigo porta-aviões: "A classe proletária. Na certa comeria. Com a verba gasta diária. Em tal quinquilharia. Sem serventia."
Ao contrário do que costuma se noticiar sobre a sua saída do país e que, de alguma maneira, o próprio artista não elucidava habitualmente, Chaves precisou se exilar antes do Golpe de 1964. As piadas contra militares causaram a ira do alta escalão das Forças Armadas, segundo o que lhe contara um amigo da família. Restou-lhe rumar a Portugal, com a ajuda financeira de amigos, meses antes do Golpe Militar. Já em terras lusitanas, apresentou espetáculo críticos, retomando o trabalho interrompido no Brasil. Foi abraçado pela juventude de esquerda e zombou da Ditadura portuguesa. Novamente perseguido, fugiu à Itália.
O retorno ao Brasil aconteceu apenas na segunda metade da década de 1960. A partir de então, tentou reconstruir a sua carreira. Surgiram novas músicas e piadas, bem como novos processos, que o levaram a adotar posturas com doses de moderação. Cumpre lembrar que, ao menos publicamente, o músico jamais fez coro em favor do fim da censura. Juca Chaves defendia o aperfeiçoamento do aparato censório e expressava o desejo de que a censura tivesse atuação mais “consciente”. Na Ditadura Militar, Chaves teceu elogios públicos aos órgãos de controle quando afirmou que estavam em processo de evolução. Para tanto, utilizou como justificativa os censores com os quais havia possiblidade de diálogo – discurso que pode também ser entendido enquanto parte de uma tática para reduzir o desgaste de sua imagem diante do Estado de exceção brasileiro. Os afagos, entretanto, não impediram os embates com a censura, tendo em vista que os conflitos se repetiram até fim do regime militar.
Após o regresso da Europa, o compositor foi, cada vez mais, atrelado à imagem que reunia ostentação e comicidade, mudança que destoava de produções e posições públicas difundidas anteriormente, quando o humorista ridicularizava a sua condição financeira desfavorável e criticava a opulência de setores da elite. Essa fase da vida pessoal e profissional de Juca Chaves foi materializada em uma de suas frases mais conhecidas, “vá ao meu show e ajude o Juquinha a comprar o seu caviar”. Colocar-se como centro da piada, contudo, não era novidade para o compositor, que desde o início da carreira proferia gracejos sobre a sua estatura, aparência e, de modo rotineiro, sobre o tamanho do próprio nariz, o que inspirou canções como “Nasal sensual”. A autoderrisão, a propósito, foi incorporada aos shows de humor do humorista em diversos momentos, inclusive com enfatização de sua ascendência judia – era filho de judeus que migraram para o Brasil durante a Primeira Guerra.
Um dos pontos analisados nesse período da vida profissional do artista (de 1966 a 1979) foi a importância de seu trabalho para construção do gênero do discurso humorístico que definimos por show solo de humor. O formato foi desenvolvido por humoristas que se apresentavam individualmente, sem adereços ou fantasias, contando anedotas ou interpretando textos autorais que por diversas vezes tinham a música como elemento constitutivo. Ao lado de José Vasconcellos, Chico Anysio, Ary Toledo, Dercy Gonçalves e outros nomes de peso da comédia nacional, Chaves contribuiu na estruturação de uma modalidade cênica que destoava do que se produzia à época. Hoje, esse estilo cômico é comumente associado ao stand-up comedy, ainda que ambos guardem notáveis distinções, como apresentamos na dissertação.
A despeito de ter se tornado referência para gerações de humoristas, Chaves com frequência apontava o quanto os prolongados boicotes sofridos prejudicavam a sua carreira. Ao fim da Ditadura Militar, migrou gradativamente para a direita política e foi lançado candidato em algumas eleições, mas não obteve êxito. Até que, em 2014, figurou entre o rol de artistas que embarcou no fenômeno conhecido por “lavajatismo”.
Em discursos carregados de certo ressentimento em programas de TV ou internet, demonstrava esperar que seu nome tivesse o mesmo prestígio de colegas de profissão mais alardeados. O estudo da trajetória repleta de contradições, processos, ascensões e quedas, lançou luz a um sujeito histórico que carregou consigo as marcas de ambiguidades e processos que nos permitem perscrutar a história dos próprios aparelhos de controle social e político. Em 2016, Jurandyr Czaczkes Chaves foi anistiado pelo Estado brasileiro. Aqui, então, eu peço licença ao rigor metodológico para apontar, em que pesem os juízos de valor, que a ação foi extremamente justa, haja vista as perdas materiais e o desgaste causado à vida de quem insistiu em cantar o que não deveria ser cantado.
E, afinal, quem calou o menestrel maldito? Ele talvez respondesse:
“Muitos querem que eu não fale. Que eu não fale, que eu não fale. Mas fazer com que eu me cale. Não conseguirão. Nem se vende como escrava. A palavra, a palavra. Nem a minha que se entenda. Não está à venda, não. Que confisquem de um banqueiro. O dinheiro, o dinheiro. Mas verdade ninguém há. De confiscá-la assim. A verdade que ofereço. Não tem preço, não tem preço. Pra vendê-la é melhor tê-la bem guardada em mim."
Mas talvez, o tempo. O tempo, e tudo que ele traz consigo, podem tê-lo calado.
Matheus Alves Silva Gonçalves
30/03/2023
