Maria Lemke
Escravidão, batismo e compadrio numa capitania do sertão ? Goiás, 1740-1850
Em projeto anterior constatei que, na freguesia de Vila Boa, antiga capital da capitania de Goiás, o apadrinhamento dos próprios cativos foi recorrente entre os anos de 1764-1820. Isso ocorreu não apenas entre senhores e crianças escravas nascidas em seus planteis, mas também com cativos recém-chegados. Tal situação destoa significativamente do que a historiografia tem encontrado em outras regiões da América portuguesa. Em 1988, Gudeman e Schwartz asseveraram que senhores não apadrinhavam seus próprios cativos em face do caráter irreconciliável entre escravidão e parentesco. Brügger (2006), Maia (2010), Góes (1993) e Schwartz (2011) também encontraram raríssimos casos dessa prática. Desse aspecto dissonante das demais regiões, decorre a seguinte problematização: o que poderia ter levado senhores daquela freguesia a reconsiderarem essa orientação valorativa, ou seja, seus padrões morais (Barth, 2001), quanto ao parentesco com seus próprios cativos? Quais os significados dessa prática na conformação da escravidão africana? Esse movimento de incorporação de escravos à família, via batismo, teria sido uma prática comum apenas na antiga capital ou recorrente em outros arraiais da capitania, como Meia Ponte, Santa Luzia, Arraias, Cavalcante e São Félix? A hipótese é a de que a disciplina católica (Hespanha, 2010, 2011; Fragoso, 2014 et passim) via batismo, aliada à forte presença de índios com os quais as guerras eram constantes, contribuiu para a organização daquela sociedade e para que as hierarquias sociais ? mormente aquelas da escravidão ? não fossem colocadas em xeque. Para responder às questões e verificar a hipótese, o foco recai nos registros de batismos de escravos entre 1740-1850 e cobrirá os arraiais de Natividade, São Félix, Arraias, Cavalcante, Crixás, Meia Ponte e Santa Luzia. Seguindo as proposições da microhistória italiana, bem como da historiografia que toma a América lusa como uma parte da Monarquia plurisinodal (Fragoso, 2014, 2017), tal documentação será cruzada com a de teor cartorário e a político-administrativa.